Reflexão exploratória acerca das relações entre ONG, Estados e OI

Apesar de o artigo que aqui publico hoje ser extenso, este cobre apenas superficialmente as relações entre as Organizações Não Governamentais (ONG), os Estados e as Organizações Internacionais (OI). Estas relações que se estabelecem entre o primeiro e o terceiro setor têm vindo a ser alvo de criticas, sustentadas por realidades muitas vezes violentas que se têm vindo a manifestar nas ultimas décadas.

Existem diversos tipos de relações entre as ONG, o Estado e as OI e estas podem representar tanto oportunidades como ameaças à Sociedade Civil e à missão das ONG.  Este artigo pretende explorar a magnitude dos outcomes destas relações, contemplando algumas teorias que constituem o pensamento acerca da sociedade civil, explorando a definição de ONG e analisando casos reais.

Importa antes de mais, clarificar e explorar a definição de Sociedade Civil de forma a que seja possível fazer um enquadramento do tema proposto.

A Sociedade Civil

Definir Sociedade Civil é uma tarefa que causa alguma discórdia entre autores e entidades, devido à amplitude e abrangência do termo. O termo Sociedade Civil está intrinsecamente interligado com o termo Terceiro Setor, uma vez que designam a mesma realidade, ou seja, falar de Terceiro Setor, ou Sociedade Civil é equivalente. A Sociedade Civil é analisada e definida em relação aos outros dois setores de atividade: o setor primário, ou setor público e o setor secundário, ou setor privado. O Terceiro Setor é considerado pela maioria dos autores como o conjunto de atividades que equilibram o primeiro e o segundo setor, na medida em que este vem responder às necessidades da população que o governo e o mercado não conseguem responder, e na medida em que este vem preencher as lacunas derivadas das doutrinas político-partidárias de forma a que sejam representadas as minorias que as doutrinas excluem (Corry, 2010). Portanto, segundo Henriques (2003) o terceiro setor, ou sociedade civil surge como um elo que complementa os papeis do primeiro e do segundo setor, tomando, contudo, igual importância relativa aos outros setores, apesar de esta não ser muitas vezes compreendida e reconhecida.

A Sociedade Civil define-se, segundo Henriques (2003), como uma rede de instituições de origem privada e de finalidade pública, que se estende a todos os fins compatíveis com o bem comum. A dimensão da Sociedade Civil é variável podendo tomar proporções tanto locais como transnacionais consoante a área e a dimensão da sua atuação.

Alguns dos princípios fundamentais que constituem o pensamento da Sociedade Civil é o principio da organização autónoma e voluntária de interesses e o principio da cidadania participativa, cuja manifestação só é possível em sistemas democráticos sólidos. Fernandes (2014) defende que, nesta perspetiva, a sociedade civil atua como uma forma de consolidação da democracia, concretizando alguns dos seus valores doutrinários: a liberdade de associação e o debate público deliberativo, ao qual está diretamente associada a noção de igualdade politica: a possibilidade de todos os cidadãos expressarem os seus interesses e a possibilidade de estes serem ouvidos de forma igualitária.

Logo, segundo o autor (Fernandes, 2014), a sociedade civil representa os interesses de todos, nomeadamente das minorias e dos excluídos, concretizando o valor democrático da representação.

As Instituições que constituem a Sociedade Civil podem ter uma multiplicidade de caracteres e de impactos na vida pública. Distinguem-se quatro grandes tipos de instituições: as instituições que enquadram a existência privada tal como as famílias que realizam funções primárias de integração social; as instituições com funções mais complexas de socialização, que incluem as associações de lazer, desporto, cultura como universidades, museus, fundações, meios de comunicação social, movimentos intelectuais, entre outras; as instituições sindicais, patronais e empresariais que fazem valer os direitos dos associados no mercado, que na sociedade civil é também sistema de relações sociais; e por fim as organizações cívicas, de defesa dos direitos humanos, do ambiente, do património, do consumidor, os grupos de pressão e grupos de interesses e até os partidos políticos.

A Sociedade Civil é então composta por organizações variadas e heterogéneas, sendo este um fator que contribui para a complexidade da sua definição e delimitação.

Resumindo, a atividade da Sociedade Civil passa por quatro práticas: a deliberação sobre o interesse coletivo; a defesa desse interesse no espaço público; o envolvimento voluntário individual; e a ação na esfera pública. Mais uma vez, para que isto seja possível, é necessário que a Sociedade Civil opere em sistema democrático permitindo que haja respeito mútuo entre interesses distintos e até mesmo divergentes.  No entanto, Fernando (2014) afirma que estas práticas não são sempre respeitadas, verificando-se que as regras da civilidade são violadas em algumas situações e que a participação em organizações pode ser obrigatória e não voluntária, como veremos mais à frente.

Refletindo agora sobre o tipo de organizações que constituem a Sociedade Civil é importante ter em conta duas grandes perspetivas: a perspetiva minimalista e a perspetiva abrangente (Henriques, 2003). A perspetiva minimalista defende que a sociedade civil é constituída apenas por associações privadas voluntárias tais como grupos de interesse locais, regionais, associações sindicais, associações filantrópicas, recreativas, culturais, paróquias, organizações de defesa do ambiente, do património, dos direitos do consumidor, entre outros. Por outro lado, a perspetiva abrangente considera que a sociedade civil é composta por todos os tipos de associações de origem privada e finalidade pública, representando assim a constituição complexa das sociedades contemporâneas. Exemplos destas organizações são: as famílias, as igrejas, os órgãos de comunicação social, os sindicatos, os movimentos sociais, os grupos de interesses, os grupos informais de pessoas dedicadas a atividades de impacto público, entre outras.

Existem ainda duas outras grandes perspetivas no que toca à constituição da Sociedade Civil: a perspetiva europeia e a perspetiva americana (Corry, 2010).  A primeira integra na Sociedade Civil as empresas e outras organizações com fins lucrativos desde que pratiquem o bem comum ou operem de forma a satisfazer o interesse público. Portanto, esta aceção hibrida não diferencia o setor secundário e o setor terciário, baseando-se apenas no propósito social das organizações e na sua missão de beneficiar a comunidade, independentemente dos seus fins lucrativos ou distribuição dos lucros. Em contraste, a perspetiva americana delimita exclusivamente a sociedade civil às organizações sem fins lucrativos e de distribuição de lucros cujo propósito seja servir o bem comum e o interesse público. Esta aceção é mais familiar porque a perspetiva portuguesa de Sociedade Civil assenta neste principio.

Importa dentro desta análise referir ainda uma outra teoria, sustentada por Michel Foucault (1978 citado em Corry, 2010): a Perspetiva Governamental, que sugere que o Terceiro Setor não é governado pelo principio da liberdade e que este não é livre do poder coercivo do governo sendo que a existência ou ação de determinados agentes neste setor é condicionada pela vontade ou interesse do Governo. A ideia de governação é baseada na ideia da existência de um sistema que interliga o primeiro e segundo setor de forma a que o governo, através de discursos, técnicas ou até mesmo instituições permita a expansão de certas atividades e constrinja outras, fazendo parece-las erradas ou impossíveis (Foucault, 1978 citado em Corry, 2010). O neoliberalismo surge como uma técnica de governação que cria um tipo de individuo autodisciplinado, adaptado a um mercado de competição e consumo e que serve esta ordem social. Por vezes a Sociedade Civil e as suas organizações são vistas, por países fora dos contornos ocidentais (até mesmo pelos próprios países ocidentais), como ferramentas da ordem neoliberal característica do Ocidente, das alianças e das Organizações Internacionais

Lipscheitz (2005, citado em Corry 2010) defende que estamos a assistir ao surgimento de uma nova governação global que destaca a sociedade civil para atingir os objetivos e interesses dos Estados.

Este pensamento irá ser importante para ajudar a construir uma análise acerca das relações entre ONG’s, Estados e Organizações Internacionais.

Segundo a ONU, a sociedade civil é o terceiro setor da sociedade que compreende as organizações da sociedade civil e as ONG. Portanto, a ONU assume como sociedade civil as associações de cidadãos (excluindo as suas famílias, amigos e locais de trabalho) constituídos numa base voluntária para promoverem os seus interesses e as suas ideologias. Não engloba neste termo as atividades lucrativas (setor privado) ou o governo (setor públicos), aproximando-se a sua visão da perspetiva americana. A ONU utiliza geralmente o termo ONG para abranger todas as organizações que não pertencem oficialmente ao governo ou a OI.

Definição de ONG

As ONG são organizações que constituem o tecido da sociedade civil, assim como outros tipos de organizações, como associações, clubes, sindicatos, etc.

As ONG são organizações independentes e autogovernadas, voluntárias por natureza, onde os seus constituintes e voluntários trabalham em conjunto para o alcance de um interesse comum, tendo este uma finalidade pública (Kilby, 2006). As ONG adotam métodos não violentos para o seu trabalho e geralmente é necessário algum tipo de registo formal destas organizações. Esta é uma definição abrangente das ONG, mas que reúne grande maioria dos consensos.  A definição de ONG varia de país para país, sendo que em alguns destes a sua definição é mais delimitada e especifica, como no caso de Portugal.

Em Portugal, segundo Franco (2015), são consideradas ONG as organizações que: têm personalidade jurídica de natureza civil e coletiva; são privadas, no sentido de nascerem da livre iniciativa da sociedade civil, não pertencendo à administração do Estado; têm formas de governo autónomas relativamente ao estado; os seus clientes geralmente não coincidem com os seus utentes, sendo os antecedentes voluntários. A sua missão principal é o incentivo à ação coletiva para o desenvolvimento de relações mais solidárias dos seres humanos entre si e com o meio ambiente onde vivem; têm um fim público; os excedentes gerados na sua atividade devem ser reinvestidos no cumprimento da sua missão, sem haver distribuição; os bens que constituem o seu património são geridos num regime de universalidade, de maneira a beneficiar a sociedade em geral.

As ONG desempenham um papel importante na manutenção da sociedade, principalmente em tempos de crise. A atuação das ONG providencia mecanismos que fortalecem a sociedade civil (Kilby, 2006), na medida em que trabalham para, muitas vezes, melhorar a condição dos marginalizados, das minorias e dos pobres, tentando diminuir a desigualdade.

Relação entre as ONG e os Estados

Respeitando o principio da autonomia do Estado que rege a sociedade civil, a cooperação entre ONG e Estados pode apresentar-se como uma mais valia para ambas as partes e, consequentemente para o desenvolvimento humano e societal. As relações que as ONG estabelecem com o Estado podem ser variadas: relações de financiamento, relações de parceria, e relações de influência.

Segundo Keck (2011), para as ONG, o financiamento do Estado providencia uma fonte de rendimentos estável ao contrário das fontes de doação privadas, que flutuam consoante as condições económicas. O financiamento do Estado providencia às ONG recursos que lhes permitem aumentar a escala e duração dos seus programas, contribuindo assim para a sua missão. Estas parcerias com o Estado proporcionam também às ONG mais projeção, visibilidade e legitimidade, podendo as ONG alcançar mais públicos e atrair mais doações privadas. Os Estados beneficiam também desta relação de cooperação na mediada em que lhes é possível canalizar ajuda, contribuindo para a distribuição eficaz de serviços às populações. Devido ao trabalho de campo e de contacto com a população local, as ONG adquirem conhecimentos profundos acerca das condições sociais, económicas, culturais e politicas do local onde operam e adquirem a capacidade de construção relações com as elites e autoridades locais, atribuindo-lhes assim vantagens de informação que são úteis para o Estado. Este expertise adquirido pelas ONG é lhes também útil sendo que estas são capazes de construir argumentos válidos e de distribuir informação precisa aos decisores políticos de forma a influenciar as politicas públicas (lobbying).

Contudo, quando existe um desequilíbrio nas relações de cooperação entre Estado e ONG criam-se problemas que podem afetar negativamente a missão das ONG.

Em Portugal a cultura das ONG difere em relação a outros países. No Reino Unido, por exemplo, as ONG são reconhecidas como uma parte fundamental do bom funcionamento da sociedade e por isso, as ONG no Reino Unido sobrevivem maioritariamente de doações privadas. Em Portugal a realidade difere: o setor das ONG não é muito valorizado e a sua ação passa despercebida, em grande parte devido aos esforços inexistentes de comunicação por parte das ONG portuguesas. Além disto, a população portuguesa tende a desconfiar das ONG devido à reputação construída com base em escândalos que ocorrem no setor. Por tudo isto, o número de doações privadas são menores, face a outros países, como o Reino Unido.

Assim, as ONG em Portugal dependem em grande parte do financiamento do Estado e das empresas. Esta relação de dependência excessiva das ONG em relação ao Estado ou em relação a grandes corporações e organizações pode influenciar negativamente a forma como as ONG e o seu trabalho é percecionado pelos públicos.

Retomando o pensamento da perspetiva governamental, segundo Foucault (1978, citado em Corry 2010) as OSC são condicionadas pelo sistema governativo neoliberal, que é capaz de ditar os assuntos que devem ser ou não trabalhados e os agentes que devem ou não operar. A Sociedade Civil é assim compreendida, a um nível nacional, como uma ferramenta do governo e das empresas, e a um nível global, como um uma ferramenta da ordem liberal dos países ocidentais e das OI. As ONG são vistas pelos Estados como uma oportunidade de veicular as suas politicas públicas externas e de atingir os seus interesses e objetivos.

A relação de dependência financeira face aos Estados e a Organizações Internacionais pode representar aqui uma agravante desta esta visão. As ONG dependem cada vez mais dos fundos dos governos, dos quais algumas ONG recebem mais de metade do seu financiamento (Smillie 1999 citado em Keck, 2011).

Segundo a teoria sociológica institucional (Keck, 2011) o ambiente onde as ONG operam molda os seus procedimentos, atividades e características, na medida em que estas necessitam de se adaptar ás características do ambiente de forma a conseguirem obter recursos e legitimidade. Quando o ambiente é maioritariamente definido pelo governo, (por exemplo, através do financiamento), então as ONG, de forma a obterem recursos e legitimidade, deverão adaptar-se ás suas medidas. A pressão exercida nas ONG para se conformarem com o ambiente resulta na institucionalização e politização do setor da sociedade civil, que, mais uma vez, vem agravar a reputação do terceiro setor, fazendo com que a população desconfie e, consequentemente, não contribua com doações, fazendo crescer a necessidade das ONG recorrerem ao financiamento do Estado, formando-se assim um ciclo negativamente vicioso. A politização das ONG vai contra um dos princípios fundamentais da sociedade civil: autonomia face ao Estado.

O ideal seria a existência de um equilíbrio na relação entre os Estados e as ONG. Keck (2011) afirma que tanto o Estado como as ONG beneficiam de uma cooperação equilibrada. Contudo, nas últimas décadas, as relações de dependência entre a Sociedade Civil e o Estado tem vindo a crescer de tal forma que se tornam desequilibradas e prejudicam gravemente o terceiro setor e toda a sociedade.

Urge a necessidade de desenvolvimento de um mecanismo justo que seja capaz de definir e controlar o equilíbrio das relações e sancionar as partes que desrespeitem tal equilíbrio.

Organizações Internacionais: A ONU

Entende-se por Organizações Internacionais a associação de Estados membros, constituídas por um tratado, dotada de uma constituição e possuindo uma personalidade jurídica distinta da dos Estados membros. Segundo Paul Reuter (citado em Ribeiro, 1998), estas são: associação voluntárias de sujeitos de direito internacional, constituída mediante atos internacionais  e regulamentada  nas relações entre as partes por normas de direito internacional e que se concretiza numa entidade de caracter estável, dotada de um ordenamento jurídico interno próprio e de órgãos e instituições através dos quais prossegue fins comuns aos membros da Organização, mediante a realização de certas funções e o exercício dos poderes necessários que lhe tenham sido conferidos.

Sendo a ONU uma organização Internacional Intergovernamental, (Ribeiro, 1998) os seus órgãos deliberativos são constituídos por representantes dos Estados, sujeitos às instruções dos respetivos governos. A sua forma de deliberação mais comum é a unanimidade, embora as exigências da eficácia e o aumento do número de estados membros tendem a atenuar esta regra a favor da maioria qualificada. O objetivo das organizações intergovernamentais é a cooperação.

ONU é definida ainda como uma Organizações intergovernamental com finalidades gerais, ou seja, tem como objetivo a concentração a nível politico, sem prejuízo, de conseguir uma multiplicidade de fins específicos, definidos em termos amplos. A sua Carta declara quatro propósitos bastante abrangentes: Manter a paz e a segurança internacional; Desenvolver relações amigáveis entre nações baseadas no respeito do principio da igualdade de direitos e da autodeterminação da pessoas; Alcançar a cooperação internacional na resolução de problemas internacionais de caracter económico, social, cultural e humanitário e na promoção do respeito pelos Direitos Humanos; e Ser o centro harmonizador das ações das nações de forma a se atingirem os interesses comuns.

Tendo em conta a definição da ONU dada por Ribeiro (1998), a reflexão aqui feita acerca do conceito de Sociedade Civil e ONG, e o propósito da ONU, pode-se concluir que a ONU não pode ser categorizada como uma ONG. A ONU é constituída por representantes dos Estados membros, sujeitos ás instruções dos respetivos governos, contrariando o principio da autonomia do governo. Apesar de ser uma organização não lucrativa com finalidade pública, cuja missão visa o bem comum internacional, o seu financiamento é 100% derivado dos estados membros, mais uma vez, contrariando o principio de autonomia face ao governo.

A Relação entre a ONU e as ONG

A ONU compreende a importância de trabalhar em parceria com a sociedade civil e desenvolveu sistemas que permitem a cooperação. A ONU reconhece que o trabalho de cooperação com as ONG ajuda a impulsionar os seus ideias e ajuda a apoiar o trabalho das ONG.

As ONG podem colaborar com a ONU de duas formas: a primeira consiste na aquisição do estatuto consultivo no Conselho Económico e Social. O estatuto consultivo oferece não só acesso ao Conselho Económico e Social mas também oferece acesso aos seus corpos subsidiários, aos mecanismos de Direitos Humanos da ONU, a pequenos processos do Conselho e a eventos especiais organizados pelo Presidente da Assembleia. A ONU oferece três diferentes tipos de estatutos consultivos às ONG: o estatuto consultivo Geral, o estatuto Consultivo Especial e o estatuto consultivo de registo. O primeiro dirigido a grandes ING internacionais cuja área de trabalho cubra grande parte dos assuntos da responsabilidade do Conselho e dos seus corpos subsidiários. O segundo é atribuído a ONG que trabalham assuntos específicos relacionados com os assuntos do conselho: estas são ONG mais pequenas e mais recentes. O ultimo estatuto é atribuído a todas as outras ONG que não se enquadram nas outras duas categorias e que tendem a ter um foco mais técnico.

Hoje em dia, 4,507 ONG têm estatuto consultivo no Conselho e o estatuto permite ainda a participação acreditada das ONG em conferências realizadas pela ONU.

Esta forma de colaboração com a ONU apresenta-se vantajosa para as ONG no sentido em que a sua participação nas atividades na ONU lhes confere notoriedade, visibilidade e legitimidade aos olhos dos públicos. A segunda vantagem deriva da primeira: ao possuir visibilidade, notoriedade e legitimidade, as ONG conseguem trabalhar em networking e alcançar mais facilmente os públicos e atrair mais doações privadas, reunindo assim condições favoráveis que lhes permitem trabalhar para o alcance dos seus objetivos. A terceira vantagem prende-se com o facto de as ONG terem a possibilidade de exercer influência direta nos decisores do Conselho. Os decisores do Conselho podem recorrer ao expertise das ONG sendo que estas providenciam informações precisas acerca das realidades e dos problemas locais, recolhidas diretamente nos locais de atuação.

A segunda forma de colaboração que existe é através da associação com o Departamento de Informação Publica da ONU. Atualmente esta associação é a ligação entre a ONU e cerca de 1300 ONG e que consiste numa relação de disseminação de informação sobre os assuntos prioritários na agenda da Organização, tais como, o desenvolvimento sustentável, a pobreza, a segurança, etc. As ONG associadas ao Departamento de Informação Publica têm a oportunidade de ajudar a construir conhecimento ao nível grassroots e apoiar a Organização. Desta forma as ONG beneficiam também de visibilidade, legitimidade e beneficiam de a possibilidade de o seu trabalho ter uma maior abrangência a nível local, regional e global.

Apesar deste trabalho de cooperação ser benéfico, estas relações podem, tal como na relação com os Estados, influenciar negativamente a perceção dos públicos relativamente às ONG e o seu trabalho.

Em outubro de 2003, o complexo do Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV) em Bagdad foi atacado por um bombista suicida, matando 18 civis e ferindo outras dezenas. Dois meses depois, a embaixada da ONU em Bagdad foi atacada, causando 23 Mortes, incluindo o representante do Secretario Geral, Sérgio Vieira de Mello. Estes são alguns exemplos dos ataques às Organizações de ajuda humanitária e aos seus voluntários. A morte intencional de civis é considerada crime de guerra. Este fenómeno de ataque a civis e instituições de ajuda humanitária tem vindo a crescer e Abiew (2012) sublinha o facto de se levantarem questões fundamentais em relação à atuação das ONG de ajuda humanitária em países do Oriente e em relação às relações que se estabelecem entre ONG, Estados e OI. Este fenómeno, segundo Abiew (2012) resulta da tendência das ONG servirem como uma extensão das agendas militares e politicas dos Estados e das OI, sendo nesta situação claramente visível os princípios da perspetiva governamental já aqui explorada.

O que leva os beligerantes do médio Oriente a atacarem estas ONG é o facto de os beligerantes percecionarem as ONG como parte do inimigo, visto que elas atuam sob a influencia dos Estados e das OI.

Esta análise revela que as relações ente as ONG, os Estados e as OI podem trazer consequências graves, impedindo inclusive que as ONG concretizem os seus propósitos. As relações que se estabelecem podem prejudicar gravemente a reputação e imagem das ONG, fazendo com que, em certos ambientes, como no caso do Medio Oriente, estas sejam percecionadas como inimigas, e , em casos extremos, sejam atacadas provocando mortes.

Conclusão

Após esta reflexão exploratória acerca das relações entre Sociedade Civil, ONG, Estados e OI podemos concluir que assistimos a uma politização e institucionalização da sociedade civil, onde se verifica a realidade da perspetiva governamental. Contudo, é possível também concluir que as relações de cooperação entre as três entidades podem trazer grandes vantagens ao trabalho das ONG, apoiando-as no alcance dos seus objetivos. Como se deve olhar e lidar com as relações entre ONG, Estados e OI?

Relativamente ao caso do CICV acima analisado, o autor (Abiew, 2012) apela à necessidade do retorno dos princípios tradicionais da ajuda humanitária: a imparcialidade; a neutralidade, a humanidade e a universalidade que complementam os princípios da Sociedade Civil, na medida em que deve haver uma imparcialidade e neutralidade entre as relações das ONG e do primeiro setor.

Acredito que a despolitização do terceiro setor não passa necessariamente por uma rutura completa de relações entre a Sociedade Civil, Estados e OI. Como já vimos, as relações de cooperação são, quando equilibradas, benéficas para todas as partes. É necessário contrariar a politização do terceiro setor e pensar e construir um sistema global justo que controle o equilíbrio das relações entre ONG, Estados e OI, sancionando as partes que desrespeitem esse equilíbrio Este equilíbrio contempla aspetos como relações de financiamento, de influencia e de pressão.

As Relações Públicas desempenham um papel fundamental nas ONG no que toca à mediação e monitorização destas relações de forma a apoiar o equilíbrio relacional. É nesta perspetiva que as RP se aproximam das Relações Internacionais: a capacidade de construir e gerir relações benéficas entre a organização e o público, que neste caso, são os Estados e as OI. As RP devem fazê-lo respeitando os princípios éticos da profissão e encorajando todos os outros agentes e decisores a seguirem princípios de transparência e responsabilidade.

Contudo, apesar de as RP desempenharem um papel fundamental nesta questão, a resolução do problema vai mais além. Cabe às Organizações e aos Estados assumirem princípios de responsabilidade e transparência no que toca ao tipo de relações que estabelecem com a Sociedade Civil e as ONG.

Só assim será possível trabalhar para alcançar o que a Sociedade Civil se propõe a alcançar: o bem comum.

 

Bibliografia e Webgrafia
ABIEW, F.,K. (2012) Humanitarian Action under fire:  Reflections on the Role of NGOs in conflict and post-conflict situations. International Peacekeeping, vol. 19 no.2, pp.203-2016.
CORRY, O. (2010). “Defining and Theorizing the Third Sector”. Third Sector Research. Pp. 11-20. Springer.
FERNANDES. T. (2014) Sociedade Civil. Fundação Francisco Manuel dos Santos. No.49.
FRANCO. R., C. (2015) Diagnóstico das ONG em Portugal. Universidade Católica Portuguesa e Fundação Calouste Gulbenkian, sob orientação de Raquel Campos Franco.
HENRIQUES. M., C. (2003) Que há de Novo na Sociedade Civil? Nação e Defesa. N.º 106 – 2.ª Série pp. 135-151.
KECK, M. (2011) Stated Funded NGOs in Civil Wars: The US case. Contemporary Politics, vol.17 no.4. Routledge
KILBY, P. (2006) Accountability for Empowerment: Dillemas Facing Non-Governmental Organizations. ELSEVIER vol.34, No.6, pp.951-963.
RIBEIRO, M. A. (1998) A Organização das Nações Unidas. Almedina, Coimbra
WEBSITE ONU. disponível em: http://www.un.org/en/sections/resources/civil-society/index.html. Consultado em: 29/05/2017

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